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Estado como indutor da insegurança alimentar

Atualizado: 24 de jul. de 2022

Como o abandono de políticas públicas de incentivo à produção de alimentos e de distribuição de renda afetam os pratos brasileiros para além dos efeitos socioeconômicos da pandemia


Homem se alimenta com doações na Praça Rui Barbosa em Bauru | Imagem: Yasmin Moscoski

“Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça; Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”. Canta a música Da Lama ao Caos de Chico Science & Nação Zumbi. A faixa faz parte do primeiro álbum de estúdio da banda pernambucana, lançado em 1994.


Na narrativa, Chico apresenta a história do “homem caranguejo”, sujeito que migra para um centro urbano à procura de uma vida melhor. Entretanto, seja na “lama” do mangue ou no “caos” da cidade, o personagem não encontra uma vida digna e plena de direitos. A ele não há emprego, moradia, saúde, lazer, segurança e, claro, comida.


A metáfora musical é um retrato da Recife de 1990 e foi regada à obra de Josué de Castro, médico, sociólogo e geógrafo brasileiro; um dos pioneiros ao estudar a fome enquanto problema político, econômico e social. “Eu nunca soube nada sobre Josué de Castro, eu nunca aprendi na escola sobre isso. É uma pena!”, aponta Science durante entrevista, disponível no YouTube. Ali, diretamente do mangue recifense, o artista expõe as influências que basearam o movimento contracultural MangueBeat.


Da Recife de Science ao Rio de Janeiro de Beth Carvalho, em que é preciso juntar um "saco cheio de dinheiro pra comprar um quilo de feijão", a fome se fez e se faz presente para fora dos retratos musicais até os dias de hoje. É o que aponta o primeiro e o segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) em dezembro de 2020 e abril de 2022.


De acordo com a segunda edição da pesquisa, divulgada em junho de 2022, apenas 41,3% dos lares brasileiros têm moradores em situação de segurança alimentar, ou seja, pessoas que mantêm o acesso regular e permanente a alimentos em quantidade, qualidade e variedade suficientes sem comprometer demais direitos.


A outra parcela, 58,7%, o equivalente a 125,2 milhões de brasileiros, convive com algum grau de insegurança alimentar, seja ela leve, moderada ou grave. Neste último caso, de IA grave, mais de 33 milhões de pessoas sobrevivem com a fome nos pratos.


A população brasileira que passa fome é maior do que toda a nação peruana, país vizinho com mais de 32 milhões de habitantes (IBGE Países 2020).



Fome é projeto


Apesar de catalisado pelos efeitos econômicos decorrentes da pandemia de Covid-19, como diminuição de salários e aumento da informalidade e do desemprego, o cenário atual de insegurança alimentar é resultado do abandono de políticas públicas. É o que conta Maria Rita Marques de Oliveira, pesquisadora e professora do curso de graduação e pós-graduação em Nutrição da Unesp de Botucatu.


“A gente tem observado, desde 2016, um verdadeiro desmonte das políticas públicas. O PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] praticamente acabou. Agora veio essa modificação do Bolsa Família. O governo federal passa a não exigir do município que ele monitore e faça o que tem que ser feito. Ele flexibiliza e, por isso, dá menos dinheiro”, informa a pesquisadora. “Existe uma retirada geral [de investimento em políticas públicas] e isso tem a ver, claro, com essa postura neoliberal de não investir e não promover o estado de bem-estar social”, complementa.

O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), citado pela entrevistada, foi criado em julho de 2003 como um dos braços do macro Programa Fome Zero, durante o governo Lula. Ele tinha, basicamente, dois objetivos principais: incentivar a agricultura familiar e promover o acesso à alimentação. Para isso, o Estado ficava responsável pela compra de alimentos regionais, abastecimento e destino às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional, atendidas pela rede pública e filantrópica de ensino e por meio da rede socioassistencial - restaurantes populares, bancos de alimentos e cozinhas comunitárias.


Ao longo da atuação do programa, principalmente durante as primeiras fases, foram constatados resultados satisfatórios no âmbito econômico, social e ambiental. O PAA foi essencial para a economia local e agricultura familiar ao garantir a compra dos alimentos cultivados por elas. Dessa forma, houve aumento de renda desses agricultores, juntamente com o aperfeiçoamento das boas técnicas de cultivo, incentivadas pela própria iniciativa.


Entretanto, foi em 2014, mesmo ano em que o Brasil saiu do Mapa da Fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação da Agricultura), que o PAA começou a sofrer constantemente com cortes de verbas.


Com agendas liberais, governos de Temer e Bolsonaro cortam investimentos em políticas públicas de segurança alimentar e nutricional | Imagem: Brasil de Fato; Jornal da USP; Portal Uol; Jornal Zero Hora; Carta Capital

Segundo Paulo Niederle, professor dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a diminuição de recursos ao PAA faz parte de um desmonte gradual decorrente da mudança da agenda governamental.


“Os recursos do PAA já vinham sendo reduzidos desde 2014, como consequência de disputas políticas e judiciais. No centro dessas disputas estava a crítica liberal à própria existência do programa, que, apesar de um orçamento limitado, legitimava a intervenção do Estado nos mercados”, informa o professor no artigo “A tempestade perfeita: crise alimentar no meio de uma pandemia”, publicado em dezembro de 2020 no livro “Comida y comunidad: inovação socioterritorial e ação pública para a promoção da soberania e da segurança alimentar e nutricional”.


De acordo com Niederle, o PAA transformou-se em um exemplo para a comunidade internacional em decorrência dos resultados alcançados a curto prazo. Intervenção do Estado na economia, centralização de compras e isenção de impostos para determinados produtores foram alguns dos pontos que chamavam a atenção da linha de extermínio da agenda liberal, doutrina econômica que prioriza a mínima atuação do Estado na economia e, consequentemente, nas questões sociais do país.


“O PAA se tornou um dos principais cartões de visita do Brasil. A coalizão liberal logo entendeu que o programa era mais ‘perigoso’ pelas ideias que ele incorporava do que pelo orçamento que demandava. Mesmo assim, ao invés de extinguir o programa, adotou uma estratégia de desmantelamento gradual”, complementa no artigo.


Oferta de alimentos é acometida


Uma das organizações afetadas pelo desmonte do PAA e de outros programas incentivo à alimentação adequada foi o Assentamento Santo Antônio Laudenor de Souza, organismo situado em Brasília Paulista, distrito de Piratininga-SP a 40 km de Bauru-SP.


No mesmo local há mais de 25 anos, o Assentamento Laudenor de Souza faz parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), organização político-social presente em quase todos estados brasileiros com o propósito de reunir e fomentar camponeses sem terra na luta pela reforma agrária. De acordo com o movimento, apenas com a reforma agrária será possível “transformar o campo em um lugar onde trabalhadores possam viver com condições dignas e produzir alimentos saudáveis”.


E de alimentos saudáveis o Laudenor de Souza entende. Mandioca, quiabo, beterraba, cenoura, cebola, couve, abobrinha, manga, maracujá, limão. Esses são alguns itens da longa lista produzida pelas 26 famílias assentadas, que apesar de parecerem numerosas, já viram dias melhores.



Quem conta isso é a bióloga Thais Souza, 27, e o agrônomo Felipe Peixoto, 30. Ambos formados pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), assentados do Laudenor de Souza e pertencentes ao Grupo Mulherando Agroecologia, organização liderada por mulheres do assentamento e responsável pela produção e comercialização de produtos agroecológicos.


“Já tiveram momentos de uma movimentação maior no assentamento, com mais famílias. Só que nos últimos anos diminuiu devido aos desgastes, falta de políticas públicas de incentivo, dificuldade de acesso ao mercado. Isso trouxe uma individualização das assentadas, né? Cada uma estava comercializando do jeito que dava até que começou a migração à procura de empregos na cidade. Uma migração muito grande porque as pessoas não tinham como produzir e vender”, informa a bióloga.


Thais comercializa itens produzidos pelos assentados | Imagem: divulgação/arquivo pessoal

De acordo com Peixoto, que mora no local desde os 11 anos de idade, programas como o PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) davam respaldo financeiro e, consequentemente, mais tranquilidade às famílias agricultoras. Era a certeza de produzir aquilo que já estava comercializado. Durante seis anos, escolas e demais instituições de Bauru e região receberam comida de verdade, fresca e nutritiva do Assentamento Laudenor de Souza.


“A gente acessou o PAA por uns seis anos, o de merenda escolar [PNAE] também e faz uns seis anos que não temos mais acesso a eles. O período não é coincidência”, afirma Peixoto ao informar que desde 2016 encontra dificuldades para ter acesso às políticas públicas. “A falta desses programas afetou a produção de alimentos e geração de renda dos produtores, assim como a organicidade”, conclui.

Em 2020, o governo Bolsonaro havia previsto um orçamento de apenas 186 milhões para execução do PAA. Foi um dos menores orçamentos previstos desde a criação do programa em 2003. Para se ter um índice comparativo, no auge da atuação em 2012, o PAA recebeu na casa de 1,2 bilhão de reais.


O governo voltou atrás com a chegada da pandemia de Covid-19. Visando diminuir os impactos negativos, concedeu um crédito extraordinário no valor de 500 milhões de reais por meio da Medida Provisória n°957/2020. A medida garantiu certo fôlego à iniciativa ao promover a compra de alimentos de agricultores familiares e distribuição aos grupos mais vulneráveis.


No entanto, 2021 trouxe consigo a consolidação da extinção do PAA e substituição pelo Programa Alimenta Brasil, iniciativa essa que não tem a abrangência e atuação em níveis igual ao projeto anterior. Segundo especialistas em Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), a atual substituição é um “programa frágil”.


Fatores que fazem parte do incentivo a agricultura familiar e promoção da SAN, como o estímulo à produção orgânica e agroecológica; a promoção e a valorização da biodiversidade; e o incentivo a hábitos alimentares mais saudáveis incluindo alimentos in natura produzidos no nível local e regional, não são abarcados pelo Alimenta Brasil, de acordo o relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que analisa a trajetória de implementação, benefícios e desafios do PAA.


“A nova legislação que criou o Programa Alimenta Brasil não trouxe indicação de garantia de recursos futuros para suas ações", aponta o relatório.


Aqui, a produção de “alimentos de verdade” é comprometida. De acordo com o Censo Agro 2017, desenvolvido pelo IBGE, cerca de 70% da comida presente nas mesas brasileiras provém da agricultura familiar, modelo esse que depende de incentivos e garantias de políticas públicas para continuar existindo. Menos política, menos comida.


Auxílio Brasil e as consequências no prato

No mesmo ano da extinção do PAA, o Governo Bolsonaro excluiu e substituiu o Programa Bolsa Família (PBF) pelo Auxílio Brasil. A ação é exemplo de como a atual agenda liberal promove a destruição de direitos humanos e sociais, dentre eles o Dhana (Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas).



Presidente Jair Bolsonaro durante reunião para entrega da medida provisória que criou o Auxílio Brasil | Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil


O programa foi criado em 2003, durante o governo Lula, para realizar a transferência direta de renda com o objetivo de combater a pobreza e a fome, já que esses dois fatores sempre andaram juntos. A ação, considerada de cunho emergencial, também fazia parte do Programa Fome Zero.


O PBF foi inovador para a época ao reunir em um único programa outras iniciativas de transferência de renda, como o Bolsa Escola, o Auxílio Gás e o Cartão Alimentação, implementadas na gestão de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Antes do Bolsa Família, cada política contava com critérios próprios de elegibilidade e implementação, o que dificultava o acesso por parte da população.


Com o cadastramento para o Bolsa Família por meio do CadÚnico, sistema único para identificar famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica, houve o aumento do número de beneficiários.


Para receber o dinheiro, as famílias tinham que cumprir com condicionalidades de saúde e educação. Elas deveriam comprovar a frequência escolar de crianças e jovens inscritos no programa, comparecer aos postos de saúde para completar o esquema vacinal, atualizar exames e realizar o acompanhamento do crescimento de crianças e gestantes.


Cartão do Bolsa Família | Imagem: divulgação

Para além do incentivo a produção, é necessário que as pessoas tenham dinheiro para comprar os alimentos produzidos. Isso é constatado por Josué de Castro desde o século passado. E essa era a função do Bolsa Família.


Com o dinheiro em mãos, os núcleos conseguiam comprar alimentos e movimentar a economia local. Ao decorrer dos anos, foi constatado a redução dos níveis de insegurança alimentar entre os beneficiários. Algumas transacionaram da insegurança grave para a situação de moderada, leve ou até mesmo para a segurança alimentar.


De acordo com o Ipea, entre 2003 e 2018, o Bolsa Família diminuiu em 15% os índices de pobreza no Brasil e em 25% os de extrema pobreza.


Em entrevista ao podcast Café da Manhã do jornal Folha de São Paulo, Denise de Sordi, pesquisadora da Fiocruz e do Departamento de Sociologia da USP, explica que o Auxílio Brasil se diferencia do Bolsa Família por desarticular o Sistema Único de Assistência Social (Suas), rede criada em 2005 com o intuito de operacionalizar ações de assistência social de forma conjunta.


“Em tese, o Auxílio Brasil dá continuidade de forma diferente ao acompanhamento das condicionalidades. Entretanto, temos o contexto no qual os CRAS, Centro de Referência de Assistência Social, estão desarticulados e desfinanciados. Então, o acompanhamento das condicionalidades em saúde e educação deixa de acontecer de forma consistente e contínua”, informa. “É uma situação que afeta o próprio programa em si. A desarticulação dessas medidas de assistência social provoca essa descaracterização do Auxílio Brasil ao Bolsa Família. Nós deixamos de saber como essas pessoas estão sendo atendidas, como está a qualidade do atendimento e como está sendo feita a gestão do programa”, finaliza.


Além disso, estima-se que apenas metade dos 100 milhões de pessoas antes atendidas pelo Bolsa Família e pelo Auxílio Emergencial permaneceu com acesso ao Auxílio Brasil, segundo o II Inquérito Vigisan.

Ainda em julho, com o intuito de aumentar as chances de reeleição, Bolsonaro aprovou a chamada PEC Kamikaze, que muda as leis e cria benefícios sociais em ano eleitoral, o que é proibido. Dessa forma, o governo federal prevê o aumento do Auxílio Brasil, de 400 para 600 reais, além de aumentar o vale-gás e pagar uma ajuda a caminhoneiros e taxistas. Os benefícios custarão cerca de 41 bilhões de reais e durarão de outubro até dezembro.


Denise Sordi critica a alteração caracterizada pelo viés claramente eleitoreiro, que não pensa a longo prazo no bem-estar da população, que já está em situação de insegurança alimentar.


“O incremento no valor do benefício vai ser utilizado para a aquisição alimentos e de necessidades básicas do dia a dia. Ele não vai ser utilizado para investimento de médio e longo prazo, ele vai ser utilizado para suprir, por exemplo, o efeito da inflação no planejamento orçamentário dessas famílias”, finaliza.


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